Sofia*

Sofia não falava. Ela não sabia falar, não por ter alguma deficiência física ou mental – não, era possuidora de cérebro e aparelho áudio-fonador perfeitos – língua, palato, glote, cordas vocais, ouvidos, tudo sempre estivera muito bem – não falava porque não podia ouvir sua própria voz, que era meio rouca, grave, voz que lhe causava estranhamento ao ganhar o mundo, ao dar ao mundo.

Sofia retinha tudo para si: o ar que respirava, prendia-o nos pulmões como quem precisa mergulhar num oceano para nunca mais voltar; a comida que ingeria era ruminada, demorava a ser digerida, inchava-lhe o estômago – Sofia ficava até uma semana e meia sem defecar; o sexo de seu homem, tentava prendê-lo dentro de si, só para si, com uma técnica especial de pompoarismo – que aprendera num desses manuais de felicidade feminina – como se este fosse o último que lhe penetraria – o segundo, ali, congelado numa fotografia, num quadro, uma imagem única, unicamente sua, o tempo-espaço seu.

Sofia não precisava falar – tudo já fora dito – quem quer ouvir Sofia? O mundo futilmente dá as suas voltas e os pensamentos de Sofia rodam sem sair do lugar. Ela aprendeu, ainda na puberdade, como masturbar sua mente – pensava pensamentos iluminadores, pensava sentimentos sublimes e tentadores, tudo só para si, sem contato, sem troca, sem calor... sentia-se muito bem... ela era brilhante!

Sofia vivia no mundo das idéias, mas, ainda assim, estava a existir no mundo real. Então, numa manhã de primavera, ela fazia um passeio pela praia, a fim de pensar melhor – renovar-se em pensamento, tomar uns ares. Eis que uma brisa balança seus cabelos, refresca seu rosto, contrastando com o calorzinho afetuoso do sol nascente e fazendo seus pêlos arrepiarem-se; a manhã cheira a mar, a céu, à vida; o céu está mais azul, a manhã é mais clara, a pipa da criança que corre contra o vento é purpuríssima. Sofia sente seu coração bater forte e, agora, tão forte que ele salta de dentro de si e cai na areia – ele rola, lambuza-se, pula, bate em descompasso, está envolvido pelos grãos mornos da areia. Sofia grita, urra ininteligivelmente, perdendo o controle e ganhando os sentidos. Ela cai exausta sobre seu coração e dorme ali um sono tão confortante e tranqüilo, que estaria mesmo no útero de sua mãe.

Ao despertar, Sofia sente-se pela primeira vez – está vivíssima. Sem pudores, ela quer correr, saltar, brincar, voar, “Bom dia”, grita ao vendedor de cocos que passa no calçadão. Ela não é mais sua, ela é do mundo – desintegrando-se vira ar e expande-se, ocupando toda parte. Na utilidade do ar, ninguém se lembra – a cada quatro segundos para a hematose, se a respiração é profunda – de que inspira oxigênio e expira dióxido de carbono, mas todos os segmentos do sistema respiratório, em sintonia, realizam sua função. Sofia está em correspondência e, sem correspondência, a felicidade está onde Sofia está.
* "Sofia" foi um dos primeiros textos que escrevi e resolvi mostrar, há mais ou menos 4 anos.

Ganhei 22 margaridas!

fjunior disse...

muito bom... gostei dos caminhos que ele vai passando... me lembra Clarice... com um quê fantástico.

Lily disse...

e o texto ganha mais sentido e mais abrangência ainda se lembramos que Sofia significa "sabedoria"!

bjksss

Anônimo disse...

Também me lembrei da Clarice, aliás, antes de ver a observação que era o seu texto, achei que era ela. Será que és a Clarice do século XXI? rsrs. Tá ótimo esse texto, parabéns! Boa semana pra ti. Bjus.

http://so-pensando.blogspot.com

Cafajeste disse...

Engraçado.. eu lembrei de "O mundo de Sofia".. hehehe.. não que eu não seja fã de Clarice Lispector.. Só conheço pouco da obra dela..

Beijos...

Grazi disse...

Estou lisonjeada com as comparações com a Clarice, mas acho que estou a muuuuuitos anos luz aquém dela. De qualquer forma, fiquei toda, toda... rssss

Lily, escolhi esse nome exatamente por causa do significado.

Ei, Cafa, o texto é meu, e não da Clarice.

Beijos e obrigada a todos!

Cafajeste disse...

Pô.. mas eu não esqueço nenhuma.. vai num vai eu curto ficar lembrando vários momentos com várias garotas..
Mas em relação a essas duas.. oq gosto de recordar são os momentos.. a química que rolava qndo estávamos juntos.. Delas eu não quero mais nada que um pouco de diversão.

Eu sei que foi você quem escreveu, só mencionei que não lembro dela pq os outros lembraram... hehehe
Beijos..

Jana disse...

Muito interessante... Libertador rs.

Eu tenho a voz rouca rsrsrs

beijo

Salve Jorge disse...

Sabe Sofia
Há aqui tanta sabedoria
Que a rima nem tem graça
Pois com tudo que se passa
Eu não poderia
Deixar de versar
Sobre esse coração a escapar
Enquanto sua graça
Ganha novo encorpar
Pois nem tudo é dentro
E tanto é fora
Que mesmo se demora
O ventre se reinventa
A poeira assenta
E a gente percebe que se contenta
Em aproveitar o agora...

Anônimo disse...

os caminhos de Sofia, em excelente texto. ricoe denso, reflexivo e de muito significado. abraços.

Jacinta Dantas disse...

Quando se consegue dar o passo, sair do ensimesmamento e acolher a vida... É lindo.
O que me conforta é que sempre há possibilidades de ser Sofia (no que se refere à sabedoria) e dar o passo. Acredito.
Beijos

Anônimo disse...

Adorei o renascer de Sofia!!!
Bjos!!!!

Flávia disse...

E tantas vezes, por essa vida, somos Sofia...

bom, eu cheguei até aqui seguindo o link que encontrei n'O Arroto... suas linhas são uma delícia de ler, e o blog como um todo é mais do que aconchegante.

Adorei.

Beijo, moça ;)

Anônimo disse...

Vamos atualizar?! Bjus e bom final de semana.

http://so-pensando.blogspot.com

fjunior disse...

eu poderia lhe responder este questionamento... se é ficcional ou auto-biográfico, mas temo que parte do encanto perder-se-ia... rs
beijo
bom final de semana.

Patricia disse...

Grazi, esse texto, assim como seus outros, é belo, sublime, delicado e encorpado. Já te disse que tens o estilo parecido com o de Clarice, porém, só parecido. Esse jeito de encantar, só você o tem.
Parabéns, querida.

Dauri Batisti disse...

Cair sobre o próprio caração, cair em si, se dar conta... Como é bom se descobrir em um novo amanhecer.

beijo.

Tatá Ninomia disse...

Que texto imagético!

Saber aproveitar os momentos de descoberta é o grande desafio.

Bjo.

Fernando César disse...

Finalmente apareceu a Margarida, digo, a Sofia...

PS: aquele "divirti"... não foi você, né???

Beijos!

Anônimo disse...

Muito bem escrito, muito rico em detalhes!
Parabéns
Beijos.

Anônimo disse...

adorei as referências.

e "manuais de felicidade feminina" foi ótimo. ahehaehhe

Anônimo disse...

Graziele

Fiquei encantda com todos os teus textos. Continuo dizendo que voce tem o dom. Continue... seus leitores vão a-do-rar.
Abraço grande

Rackel disse...

E vc fez mto bem em te-lo mostrado... "sofia" é umt exto belíssimo!!!

bjs